sábado, 30 de outubro de 2010

Intertextualidade O relato de um dia no dia a dia de quem relata o real

A preparação
São 7 horas da manhã e o jornal já está na porta de casa quando Sinara Neves se levanta para viver mais um dia em busca de notícias. O café da manhã é modesto, nada digno de quem sairá do lar sem ter certeza do que o espera, sem saber se irá almoçar, jantar ou, quem sabe, voltar para casa. O complemento alimentar são as informações impressas à sua frente, no exemplar que garante uma passagem mais lúcida para o local de trabalho.
Neves é jornalista há sete anos. Graduou-se em 2002, quando a internet e sua brevidade alucinante já não eram, pelo menos entre os estudantes de jornalismo, uma novidade. Mesmo assim, ela ainda prefere os impressos para se atualizar e buscar referências. “Não ignoro a web e seu potencial. É uma plataforma que veio para ficar. Mas sou um jovem preso ao antigo costume de sujar os dedos com jornais impressos e tenho um insano prazer ao sentir o meu trabalho, finalizado nas palmas das minhas mãos”, conta.
No caminho para a redação do jornal Diário do Rio Doce, de Governador Valadares, Neves faz render suas considerações a respeito do jornal impresso. Entusiasmada, afirma que, “se hoje o papel é “furado” pela agilidade dos meios eletrônicos, ele ganha em termos analíticos”, e observa que “o jornal impresso mudou sua forma de atuar para sobreviver. Agora, as matérias são mais recheadas de análises de profissionais relacionados ao tema, além de serem mais críticas e menos presas ao factual”.
Às 8 horas a Redação já está movimentada. Minutos antes da reunião de pauta, na qual são definidos os assuntos mais relevantes que serão abordados na próxima edição, jornalistas, fotógrafos e editores fazem as tradicionais piadas sobre política, futebol e o famigerado jet set valadarense. Quando, enfim, começam os trabalhos, temas recorrentes transitam sobre a mesa: violência na periferia; buracos por toda a cidade; chuva e o risco de dengue e enchentes; futebol e os preparativos do Esporte Clube Democrata para o Campeonato Mineiro de 2010.
            Tudo acontece de forma automática e nada romântica. O espaço que acredita-se ser de geração de ideias propostas de histórias com viés criativo é, na realidade, uma mesa onde quase tudo já está pré-estabelecido, quase um processo viciado. Discussões, sugestões e consensos bem elaborados, vez ou outra, trazem as sensações de volta ao que se espera que seja uma reunião de pauta. Um dos pontos altos foi a proposta da própria Sinara Neves, de, neste mês de dezembro, fazer uma espécie de balanço do primeiro ano de gestão da prefeita Elisa Costa (PT). Trata-se da primeira mulher eleita para a Prefeitura de Governador Valadares, cuja eleição, segundo a jornalista, foi marcada por um contagiante clima de transparência e respeito.
            Mesmo sabendo não tratar-se de algo original, foi unânime a posição favorável ao projeto, dada a sua relevância para o contexto de atuação do veículo. “O leitor do Diário quer ter informações a respeito da gestão da Elisa. Foram muitas promessas e temos o dever de averiguar se elas estão sendo cumpridas”. Quando questionada a respeito da inclinação política do jornal, ela desconversa. “O dono do jornal pode ter qualquer tipo de ideologia, mas o nosso trabalho é super respeitado. Temos liberdade para apurar e publicar”, afirma.

A busca
Sinara, autora da proposta de “fiscalizar” a gestão Elisa, é, no mesmo dia, escalada para fazer um balanço dos buracos que atormentam motoristas, motociclistas e ciclistas de Valadares. “Vamos lá. Missão dada é missão cumprida”, brinca, parafraseando célebre expressão do filme “Tropa de Elite”. O momento de descontração faria um sentido desagradável logo a seguir. Seria mesmo preciso ter a bravura e a frieza do capitão Nascimento para encarar o dia que a esperava.
“Não há buracos na cidade. A cidade está um buraco”. O desabafo irônico de Sinara era a síntese do cenário. Do centro de Valadares aos bairros que mais sentem a ausência de ações do poder público, a constatação era uma só: a eficiência e a eficácia da chuva na produção de buracos apresentava contraste absoluto com a quase inércia da Prefeitura.
A habilidade da jornalista era notável. O olhar atento a tudo e todos, a caneta e o bloco nas mãos, o gravador engatilhado e as sugestões de fotos na ponta da língua. O fotógrafo, que também era motorista, preocupou-se mais com a fuga das crateras do que com as avaliações de ângulos e focos e quadros possíveis.
            Nos bairros Jardim do Trevo e Turmalina, às margens da rodovia BR 116, a população revoltada recebeu a equipe do jornal como se se tratasse de uma salvação. Segundo Sinara, é comum as pessoas, principalmente as mais humildes, enxergarem a imprensa como a solução dos problemas. “Esse caráter de prestação de serviço que nós temos contribui para confundir as coisas”, acrescenta. Porém, ela salienta que, em essência, a função do jornalista é registrar e tornar públicos fatos relevantes, embora “muitas vezes a nossa presença ajude a mudar uma situação”.
            Famílias com cinco, seis filhos, crianças de colo e moradias precárias convivem com ruas que, antes sem pavimentação, hoje estão tomadas por mato, bichos peçonhentos e espaços que são convites para crimes. “Aqui não tem mais rua. O ônibus não vem mais, o barro toma conta de tudo e as crianças ficam doentes, com viroses, micoses e dor de cabeça”, reclama uma das moradoras do Jardim do Trevo. Indignada, ela afirma ainda que já desistiu de reclamar com a Prefeitura. “É ilusão. Eles não fazem nada por nós. Pobre só é lembrado em ano de eleição”, dispara.
            No centro, motoristas, motociclistas e os milhares de ciclistas que circulam em Valadares diariamente pareciam reclamar em uníssono nos ouvidos da Sinara. “Parece até que eu sou a prefeita”, brinca, em outro momento de tentativa de aliviar a tensão. Sob sol forte – típico da cidade – entre nuvens carregadas, a jornalista colhia depoimentos que beiravam a ira. “Olha aí, daqui a pouco chove, abre mais um monte de “panela” e a gente arrebenta o amortecedor, a roda, o pneu. A conta vai para a prefeitura?”, atacava um empresário, em linguagem contrastante com seu reluzente automóvel.

A forma
            Após colher os dados, a matéria-prima daquilo que vai chegar a residências, escritórios e em toda parte, chega a hora de dar a forma a tudo que foi ouvido, anotado, gravado e sentido. “As sensações influenciam, sim. A gente precisa ser frio, imparcial, mas é difícil ficar indiferente vendo o descaso com as pessoas”, lamenta Sinara, em um dos raros momentos em que a resignação e a frustração se misturam e para deixá-la desmotivada. Mas ela sacode a poeira e dá a volta por cima, dando continuidade à sua tarefa – não teria escolha, já que tem um prazo para entregar o texto ao editor.
            Escolhendo a melhor trama de palavras, costurada por uma pontuação cadenciada, o ritmo que ela imprime é fascinante. A matéria, de aproximadamente duas laudas, perpassou por mais uma das qualidades da boa prática do jornalismo: a imparcialidade. O vigor e o cuidado no tratamento da informação era nítido, com relato sincero e envolvente sobre a situação vivida por vários cidadãos valadarenses. Sinara teve o mérito de fazer um texto clássico, uma pirâmide invertida concisa, mas sem perda de detalhes. As linhas informam e tocam as pessoas sem julgar ninguém.
            “Quem julga é juiz”, esta seria a última tirada espirituosa de Sinara Neves. A jornalista cumpriu o acordo que firmou com a sociedade e com a sua consciência. Amanhã, irá atrás de mais uma pauta relevante para dar sequência à série de reportagens especiais sobre o primeiro ano da gestão Elisa Costa. Qual será? “Tenho observado que muitos moradores estão reclamando da falta de uma decoração de Natal em Valadares”, confidenciou. Isso foi mais que uma dica. A decoração é tradição em muitas cidades e, segundo ela, Valadares está – ou estava – nesse grupo. Uma boa matéria sobre isso será um belo presente de Papai Noel.

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